Histórias sobre grandes inundações aparecem nos mitos de diversas culturas ao redor do mundo. Desde os relatos da antiga Suméria e da Babilônia até as tradições dos povos indígenas das Américas, passando também por lendas hindus, gregas e chinesas, o tema de uma enchente catastrófica que destruiu a humanidade é um arquétipo recorrente.
No mundo ocidental, a mais conhecida dessas histórias é, sem dúvida, o dilúvio bíblico, no qual Noé é instruído por Deus a construir uma arca para salvar sua família e os animais da Terra.Durante séculos, estudiosos buscaram compreender as origens dessa narrativa presente no Livro do Gênesis. Seria apenas uma parábola? Ou haveria raízes históricas e culturais mais antigas? Em 2009, uma descoberta surpreendente trouxe uma nova e reveladora peça para esse antigo quebra-cabeça.
O Dr. Irving Finkel, respeitado especialista em textos cuneiformes do Museu Britânico, teve acesso a uma pequena tábua de argila babilônica datada de aproximadamente 3.770 anos atrás.Quando Finkel começou a traduzir os símbolos escritos em cuneiforme acádio, percebeu que o conteúdo era nada menos que uma versão do mito do dilúvio — uma que antecede até mesmo a famosa Epopeia de Gilgamesh e inclui detalhes até então desconhecidos.

Em 2009, o Dr. Irving Finkel, curador do Museu Britânico e uma autoridade em escrita cuneiforme, teve acesso a uma tábua de argila babilônica que estava na posse de um colecionador britânico. O artefato havia sido herdado do pai do colecionador, um ex-soldado que serviu no Oriente Médio. À medida que Finkel começou a traduzir os sinais cuneiformes, rapidamente percebeu que estava diante de uma versão babilônica do mito do dilúvio, escrita em acádio há aproximadamente 3.770 anos.
O conteúdo da tábua é uma variante da epopeia de Atra-Hasis — uma figura equivalente ao Noé bíblico — e revela detalhes surpreendentes, especialmente sobre a construção da arca e a preservação dos animais.
A narrativa contida na tábua é ao mesmo tempo familiar e surpreendentemente distinta da versão bíblica. Nela, os deuses decidem destruir a humanidade com uma inundação devastadora. No entanto, o deus Enki (também conhecido como Ea) quebra o silêncio e avisa um homem justo chamado Atra-Hasis sobre a catástrofe iminente. Para garantir a sobrevivência da vida na Terra, Enki instrui Atra-Hasis a construir uma arca e levar consigo “dois de cada espécie de animal”, preservando a criação.
Alguns dos “novos” detalhes descobertos nesta tábua específica de Atrahasis (existem outras versões) são fascinantes. Por exemplo, entre os muitos animais que deveriam ser levados a bordo, a lista inclui 44 tipos de cobras, 19 tipos de cães, 13 tipos de insetos — com três tipos adicionais de gafanhotos diferenciados pelo tamanho —, 16 tipos de larvas, 5 tipos de lagartos, 3 tipos de chacais, 11 tipos de escorpiões e 20 tipos de leões, todos refletindo um mundo genuinamente mesopotâmico da época. Talvez a categoria mais surpreendente seja a presença de 23 grupos de porcos, algo intrigante considerando as proibições religiosas posteriores.
A arca descrita na tábua, porém, não se assemelha ao barco retangular frequentemente retratado nas ilustrações bíblicas. Em vez disso, ela possui um formato redondo — como um enorme corácula, uma embarcação circular feita de junco, tradicionalmente ainda utilizada hoje em regiões do Iraque e da Índia. Esse detalhe não é meramente simbólico; ele reflete um conhecimento técnico e ambiental profundo da antiga Mesopotâmia.

Um dos aspectos mais notáveis da tábua é a descrição detalhada da construção da arca. Segundo o texto, a embarcação deveria ter cerca de 70 metros de diâmetro, um tamanho gigantesco para os padrões da época. A estrutura seria feita com materiais naturais, como juncos e cordas trançadas, e impermeabilizada com betume. O interior contaria com compartimentos para abrigar os animais, que entrariam em pares. A construção não tinha como objetivo a navegação, mas apenas flutuar e resistir à violência da inundação — uma espécie de cápsula de sobrevivência diante da destruição iminente.
Essa descrição precisa faz da tábua aquilo que pode ser considerado o mais antigo “manual de construção naval” conhecido na história. Mais do que isso, levanta a hipótese de que a ideia de um dilúvio universal e de uma arca destinada a preservar a vida é muito mais antiga do que a versão apresentada no Antigo Testamento.
A descoberta da tábua reabriu debates fundamentais sobre a origem do mito do dilúvio. Tudo indica que essa história não surgiu entre os hebreus, mas foi herdada de culturas mais antigas, como a babilônica e a suméria, onde versões semelhantes circulavam séculos antes. É possível que, durante o exílio babilônico no século VI a.C., os judeus tenham entrado em contato com essas narrativas e adaptado seus elementos ao que hoje conhecemos como o relato do Gênesis.
“Tenho 107% de certeza de que a arca nunca existiu”, disse Irving Finkel na época.

Finkel descreveu a tábua de argila como “um dos documentos humanos mais importantes já descobertos”, e suas conclusões prometem causar impacto no mundo do criacionismo e entre os caçadores da arca, onde muitos acreditam na verdade literal do relato bíblico, e inúmeras expedições foram organizadas na tentativa de encontrar os restos da arca.
O Dr. Finkel publicou um livro baseado em sua importante descoberta: The Ark Before Noah (“A Arca Antes de Noé”), que revela em primeira mão a tradução de uma extraordinária tábua cuneiforme. A obra é uma combinação envolvente de arqueologia, filologia, história antiga e uma investigação quase “detetivesca”, escrita de maneira acessível mesmo para leitores leigos.
Finkel começa relatando sua própria experiência ao receber o artefato de um colecionador privado e detalha o processo de tradução dos sinais cuneiformes da tábua, escritos em acádio. A partir daí, ele se aprofunda na rica tradição mitológica da Mesopotâmia, explicando como as histórias de dilúvio eram comuns na literatura suméria, babilônica e assíria — e como essas narrativas provavelmente influenciaram o Livro do Gênesis, escrito séculos depois.
Assim, os elementos centrais do mito — um homem escolhido por uma divindade, a construção de uma arca, animais aos pares e o dilúvio que varre o mundo — se revelam como parte de uma antiga tradição cultural, reinterpretada por diferentes civilizações ao longo do tempo. A pequena tábua de argila, portanto, não apenas reconta uma história conhecida, mas também nos ajuda a compreender suas origens profundas e caminhos esquecidos.