Eles não precisam mais desenhar o impossível. Agora, basta pedir para a IA mostrar — e ela mostra. Em vídeos com estética de documentário, cortes suaves, drones imaginários e trilha sonora épica, surgem cenas que antes habitavam fóruns conspiracionistas e comentários de rodapé: uma muralha de gelo na Antártida, reptilianos escapando do subsolo, naves pairando sobre cidades, pirâmides escondidas na Amazônia, a Arca de Noé intacta, gigantes construindo civilizações. Tudo com aparência de realidade. Tudo com tecnologia de ponta.
Durante anos, o que impedia essas histórias de ganharem força era a estética. Até os próprios conspiracionistas reclamavam que seus vídeos eram sempre de baixa resolução. A piada era automática: “Com tanta tecnologia no mundo, ninguém filma um disco voador em HD?”. Isso mudou. Com ferramentas como o Veo 3, a nova IA de vídeos do Google, qualquer pessoa pode transformar delírios em vídeos com qualidade cinematográfica. Basta digitar: “Crie um vídeo realista de um avião da NASA sobrevoando estátuas alienígenas em Ratanabá”, e o vídeo aparece. Em segundos. Com luz, sombra, narração pausada e tudo o que um conteúdo viral precisa. A IA não cria provas. Ela cria as provas necessárias para convicções já existentes.
Não é mais preciso um estúdio, uma câmera ou um roteiro. Basta um bom WiFi, uma conta em uma plataforma de IA e um pouco de criatividade conspiratória. O que antes exigia fé, agora tem pixels. E o que antes era descartado como devaneio, hoje ganha curtidas, monetização e seguidores. Estamos assistindo, em tempo real, à profissionalização da conspiração. Ela vem bem editada, renderizada e otimizada para engajar, com voz grave, fundo cinematográfico e legendas em caixa alta. Mas, afinal, em meio a tantos conteúdos, como, de fato, vídeos feitos por IA estão turbinando teorias da conspiração?
1. Reptilianos
A teoria da conspiração que domina há pelo menos uma década parcela significativa do imaginário de cidadãos dos EUA, agora também se manifesta ao redor do mundo. Os vídeos mais compartilhados sobre reptilianos simulam cenas em que criaturas humanoides de pele escamosa emergem de túneis ou áreas subterrâneas, como se estivessem retornando à superfície após séculos escondidos. Em outra versão, o vídeo foca em uma entrevista com Mark Zuckerberg, mas, à medida que a câmera se aproxima, seu rosto lentamente se transforma em um réptil, com olhos verticais e pele texturizada. Tudo isso é um exemplo de deepfake, com transições suaves, iluminação realista e cortes que imitam a linguagem jornalística. Nos comentários, alguns riem; outros falam em “prova cabal”, “acordar da matrix” e “sistema em colapso”.

2. Alienígenas (OVNIs)
Vídeos de naves alienígenas gerados por IA se tornaram rotina em grupos conspiracionistas, inclusive rendendo matérias de checagem de fatos ao redor do mundo com esse alerta. A estética varia. Alguns mostram discos voadores sobrevoando áreas urbanas, filmados “acidentalmente” por celulares, enquanto outros exibem luzes piscando no céu, com movimentos erráticos e sons graves e distorcidos. Em alguns, naves pousam em campos desertos, sempre com uma suposta “testemunha” tremendo a câmera no melhor estilo found footage. Alguns vídeos chegam a mostrar supostos alienígenas de perto, e os comentários garantem que “dessa vez é real”.

3. Muralha de gelo
Adepto de conspiracionistas da terra plana, a ideia de uma “muralha de gelo” circulando o planeta terra já vem sendo desmentida há anos. Com IA em mãos, porém, as muralhas de gelo se tornaram visualmente mais sofisticadas. Elas simulam sobrevoos por uma vasta faixa polar até que enormes paredões congelados surgem, supostamente marcando o limite da Antártida e da própria Terra. Em algumas versões, humanos caminhando são inseridos para mostrar a “proporção real”. Em outras, aparece uma entrada secreta, com cavernas brilhando e paisagens inexploradas logo além do gelo. Há vídeos que mostram ouro, pirâmides e civilizações escondidas do outro lado. A IA entrega o que a imaginação solicitar, e a ilusão, nesse caso, é servida em 4K.

4. Pirâmides secretas
Cenários desérticos, trilhas sonoras místicas e drones que sobrevoam estruturas geométricas. Ideias sobre pirâmides secretas ou mesmo sobre cidades subterrâneas alimentadas por uma suposta energia das pirâmides surgem de tempos em tempos e são desmentidas por especialistas. Os vídeos de pirâmides secretas criados por IA simulam descobertas que a “arqueologia oficial” supostamente teria escondido da humanidade. Há pirâmides subterrâneas com entradas lacradas e outras que brilham quando “energizadas” por alienígenas. Em muitos casos, há narrações robóticas mencionando “frequências universais”, “linhas de energia planetária” e “sabedoria ancestral reprimida”. O visual impressiona com texturas realistas, vozes pausadas e closes dramáticos.

5. Ratanabá
A teoria da cidade perdida na Amazônia ganhou corpo com a ajuda da IA. Vídeos mostram estátuas de ouro gigantes escondidas sob árvores densas, mapas digitais e drones voando sobre templos cobertos por vegetação. Em uma das versões, uma suposta aeronave da NASA sobrevoa a região e captura imagens de figuras humanoides talhadas em pedra, tudo gerado por IA. Os vídeos exploram ângulos dramáticos. O nome Ratanabá aparece em destaque, como se fosse uma civilização antiga redescoberta. No imaginário conspiracionista, trata-se de um El Dorado digital.

6. Arca de Noé
Com frequência, arqueólogos organizam expedições para encontrar o que poderia ser a chamada “Arca de Noé”. Sem sucesso no mundo físico, alguns teóricos da conspiração passaram a imaginar a alternativa no digital. Com estética de documentário, os vídeos que simulam a descoberta da Arca de Noé mostram uma estrutura gigantesca presa em montanhas, desertos ou até geleiras. Em outra versão, uma equipe de pesquisa com jalecos e logotipos falsos de universidades explora o interior da embarcação. A IA recria madeira ressecada, instrumentos de medição e até diálogos abafados entre os “pesquisadores”. A encenação é perfeita para quem busca confirmação de crenças religiosas e, para quem não busca, é suficientemente convincente para gerar dúvida.

7. Gigantes
Talvez o mais mítico de todos, os vídeos sobre gigantes misturam arqueologia e fantasia. Não é de hoje que imagens são manipuladas para supostamente apresentar ossadas de gigantes na natureza. Com a IA em cena, surgem imagens realistas de humanoides com seis metros de altura arrastando pedras e construindo as pirâmides do Egito, tudo com fluidez, sombras precisas e clima épico. Em outras versões, ossadas gigantes aparecem em escavações, com pessoas minúsculas por perto para dar escala. Apesar de parecer absurdo, há vídeos que se mantêm na margem da realidade, mostrando gigantes de cerca de três metros de altura, o que os faz soar como gravações perdidas e recém-reveladas. Eles simulam reportagens antigas, jornais empoeirados e até supostos arquivos secretos de governos. É o mito de Golias, agora renderizado em tempo real para milhões acreditarem.
Renderizar é persuadir
A questão aqui não é apenas o conteúdo. É a forma. A estética da mentira se profissionalizou. Quando um vídeo tem luz precisa, enquadramento limpo, narração pausada e closes dramáticos, ele já nasce com aparência de verdade. A IA não apenas produz imagens — ela produz a sensação de que algo está sendo revelado. E quando a mentira vem embalada como documentário, o efeito não é apenas confundir. É criar certezas que resistem a qualquer tentativa de desmentido.
Isso marca o início de uma nova fase das teorias da conspiração. Antes, elas se espalhavam por texto, áudio, fóruns obscuros ou vídeos com edições suspeitas. Hoje, elas aparecem renderizadas em 4K, com linguagem de divulgação científica, ritmo de storytelling e estética de jornalismo investigativo. Em vez de se esconder, a narrativa da revelação agora se apresenta com autoridade. E o que antes era marginal ganha espaço central no feed de milhões de pessoas, impulsionado por algoritmos que premiam o engajamento — não a veracidade.
Não se trata de nostalgia por um tempo em que tudo era mais crível, mas de uma urgência real: ou a sociedade aprende a reconhecer a lógica das simulações, ou viveremos em uma guerra de versões com aparência de fato. O desafio agora é ético, educacional e político. Porque não é apenas a ciência que está em disputa. É a própria ideia de realidade compartilhada. Caso contrário, aceitaremos que a próxima “verdade” viral seja decidida por um prompt?
Ergon Cugler, Mestre em Administração Pública e Governo, e pesquisador para a estratégia nacional contra a desinformação, Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Camila Modanez, Pós-Graduanda em Estratégia e Liderança Política, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Este artigo foi republicado do The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.
